sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

O último recurso


Por Pedro Lomba

No sábado passado Vasco Pulido Valente escreveu na sua coluna que o nosso semipresidencialismo não funciona. Isto porque o conflito Sócrates-Presidente, que tanto agita a imprensa, está para durar. E Pulido Valente sugeria que, enquanto não gerar um vencedor e derrotado - ou seja, a sua própria implosão -, a guerrilha irá persistir. Com a agravante de que Sócrates tem as presidenciais à porta para enfrentar Cavaco; e o Presidente tem a governação diária e a exígua credibilidade do primeiro-ministro para aparecer como oposição e a única autoridade confiável do sistema.
Ora, eu não consigo dizer com certeza se este "sistema híbrido" como é, de facto, o semipresidencialismo, funciona ou não. Mas sei que uma coisa é perguntarmos se o semipresidencialismo tem funcionado para o que se esperava; outra é se, face ao que temos aprendido nestes 33 anos, poderá continuar a funcionar no futuro. Não há nenhuma razão para não respondermos sim à primeira pergunta e não à segunda. Tudo depende.
Depende da lógica particular que está na origem do nosso semipresidencialismo; e depende, claro, de percebermos se aquela lógica se mantém. Vasco Pulido Valente lembrava uma causa histórica decisiva. O semipresidencialismo nasceu entre nós em parte para domesticar os militares. Em 1976 o governo dependia politicamente do Presidente da República e do Conselho da Revolução, que era um órgão de soberania autónomo e com um poder de veto. O facto de o primeiro Presidente ser um militar eleito, Eanes, assegurava que as Forças Armadas, institucionalizadas no Conselho da Revolução, responderiam perante um órgão político, contribuindo para as enfileirar dentro do regime.
Como é sabido, este cenário mudou com as revisões constitucionais. Os partidos aplicaram-se em reaver o seu papel e o Presidente acabou mais diminuído. Mas convém dizer que o semipresidencialismo não acabou aí, pela simples razão de que não nasceu só por isso.
Desde o início que a legitimidade do Presidente da República advém da sua eleição por sufrágio directo e universal. Quando os constituintes de 1976 instituíram a eleição directa, tinham na memória a eleição fracassada do general Humberto Delgado em 1959. Recordavam-se que Delgado ameaçara Salazar com a frase "Obviamente demito-o" e sabiam como é que a ditadura reagiu à afronta: suprimindo a eleição directa do Presidente.
O Presidente que esses constituintes ajudaram a delinear e que ainda hoje permanece visava por isso um objectivo específico: dividir e arbitrar o exercício do poder e, pormenor essencial, limitar o poder de um governo que possui competências políticas e legislativas incomparáveis na Europa.
Em 1960, o Governo de Salazar tinha poder. Em 2009, em inúmeros sentidos o Governo de Sócrates detém ainda mais poder. Não prende, mas tem muitas formas de silenciar. Não mata, mas se quiser persegue. O que tem para distribuir arbitrariamente pelos seus "amigos políticos" são recursos que o paroquial Salazar desconhecia. Essa é a contradição mais impressionante deste regime. Como é que nos libertámos dum Estado obscuro e governamentalizado e fomos gerando outro, em certos aspectos, mais obscuro e governamentalizado?
Enquanto o governo for tão poderoso como é, enquanto o primeiro-ministro exercer um controlo único e dado a toda a espécie de abusos sobre o Estado e a sociedade, enquanto os partidos gerarem políticos sem credenciais, prescindir do estatuto do Presidente da República e assim do semipresidencialismo pode implicar um suicídio. Dificilmente podemos prescindir da última instância de recurso que o regime nos concede. Quem pretender a sua reforma tem de repensar o regime e a concentração de poder no governo, a causa mais próxima do "sistema híbrido" que temos. Jurista

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